Foto: Geani Paula/Assesoar

Por: Elisângela Bellandi Loss, Felipe Fontoura Grisa e Janete Rosane Fabro.

Texto publicado na edição 180/2023, da Revista Cambota.

Em um país de dimensões continentais, permeado por diversos biomas, com uma das mais ricas biodiversidades mundiais, é quase impossível pensarmos que haja fome, e principalmente fome no campo. Mas isso é uma realidade!

Essa triste realidade nos assola há bastante tempo, resultado do modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil.

Na agricultura não é diferente, devido à característica principal do agronegócio, que é a junção da agricultura com os donos do capital industrial e financeiro, o que se traduz na máxima exploração dos recursos naturais no intuito de gerar lucros. O produto final são alimentos ultraprocessados de baixo valor nutricional ou matéria-prima para a exportação.

O Brasil é um dos maiores produtores agrícolas do mundo, não é à toa que no ano de 2022 exportamos só de soja 78 milhões de toneladas e de milho 43,5 milhões de toneladas, segundo dados da Associação Nacional de Exportadores de Cereais (ANEC), citado por Carneiro, 2023).

O IBGE estima que em 2023 a safra será recorde, com colheita de 305,4 milhões de toneladas de cereais, leguminosas e oleaginosas (IBGE, 2023). Contraditoriamente e somado a outras tantas injustiças e desigualdades sociais que a classe trabalhadora enfrenta, hoje, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) temos 33,1 milhões de brasileiros e brasileiras vivendo com insegurança alimentar grave e 125,2 milhões de pessoas vivem com algum grau de insegurança alimentar, segundo dados do (PINOTTI, 2023).

Diante desses dados, como admitir a existência da fome se temos uma enorme produção? Estamos produzindo o quê? Para quê? Para quem?

Paradoxalmente, percebe-se que ao longo do desenvolvimento desse modelo, quanto mais colhemos, maiores os recordes de produção, aumenta consideravelmente o número de pessoas que passam fome ou sofrem de desnutrição.

A fome está em todos os espaços. Dados da Penssan mostram que seis em cada dez habitantes que vivem no campo apresentam algum grau de insegurança alimentar (INFOMONEY, 2023). E que além desse quadro, analisando o que chega na mesa dos trabalhadores e trabalhadoras, a alimentação apresenta-se insuficiente em quantidade e também em qualidade.

Cabe ressaltar a grande contaminação dos alimentos produzidos com uso de agrotóxicos e transgênicos. Se não bastasse essa realidade, a falta de alertas em relação à baixa qualidade dos alimentos ultraprocessados induz à falsa fome, pois, apesar do acesso ao alimento, este não possui qualidade suficiente para nutrir o corpo, propiciando o desenvolvimento de diversas doenças crônicas não transmissíveis.

Estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Fiocruz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de Santiago de Chile calculou o número de mortes prematuras (de 30 a 69 anos) associadas ao consumo de ultraprocessados no Brasil. Os dados indicaram que, por ano, 57 mil pessoas morrem prematuramente devido ao consumo desses alimentos. (TORRES, 2022)

No aspecto produtivo e distribuição das terras, os dados da concentração são alarmantes. Muito embora a agricultura familiar seja a grande responsável pela maior parte dos alimentos que chegam à nossa mesa e corresponda a 77% dos estabelecimentos rurais, ocupa somente 23% da área de todos os estabelecimentos rurais do país, segundo dados do Censo de 2017 (CONAB, 2021). O mesmo Censo aponta que somos um dos países com maior concentração agrária do mundo, onde 1% dos proprietários de terras detém 47% das terras usadas para produção agropecuária. Por outro lado, donos de terras com até 10 hectares ocupam somente 2,3% do total (BRASIL DE FATO, 2019).

Em relação à industrialização e o acesso aos alimentos, dados apontam que cerca de 60% a 70% do montante comprado por uma família é proveniente de apenas 10 corporações (ELIAS, 2021). Os dados demonstram a grande concentração tanto na produção quanto na industrialização dos alimentos. Ou seja, um pequeno grupo de indústrias transnacionais determina, desde 1990, o que comemos e como comemos.

Essa é a raiz do problema, vivemos em um modelo que concentra a riqueza e a terra, domina os processos de industrialização e distribuição dos alimentos, com enormes desigualdades e injustiças sociais. Para contrapô-lo, o que falta são políticas de produção e acesso aos alimentos de qualidade, de redistribuição da terra, de diminuição da desigualdade social e justiça social.

Agroecologia é o caminho

No Brasil, na década de 1970, agricultores e agricultoras, técnicos e técnicas que não comungavam com os princípios da Revolução Verde criaram o movimento denominado “agricultura alternativa”. Nos anos 1980 e 1990, o movimento passa a utilizar a nomenclatura “produção orgânica”, mas com o avanço do capitalismo verde, nos anos 2000 passa-se a utilizar o termo “agroecologia” para denominar o modelo de produção que se opunha aos modelos ligados ao capitalismo agrário.

No entanto, há uma confusão generalizada a respeito do significado da produção agroecológica e da produção orgânica. Quando se trata de abordar as questões que provocam a fome no Brasil, é fundamental esclarecer as diferenças entre elas.

Você sabe a diferença entre produção orgânica e agroecológica? Vamos lá!

Hoje a produção orgânica é conhecida como um conjunto de técnicas que substituem os agrotóxicos e adubos altamente solúveis por outros não prejudiciais à saúde. Porém essa forma de agricultura não debate a estrutura agrária nem a produção e distribuição de alimentos. Ela produz para o que chamamos “nicho de mercado”, que nada mais é do que produzir para quem puder pagar. Nesse sentido, essa forma de produção não altera o atual quadro da fome, de desigualdades, mesmo que tenha práticas menos agressivas ao ambiente. Muitas vezes, utiliza-se apenas o termo “sustentabilidade” ou “preservação ambiental” com meros interesses de venda e lucro. O mercado está em plena expansão e tem avançado com tecnologias como os bioinsumos em substituição ao pacote tecnológico convencional.

Já a agroecologia compreende que não adianta avançar nos processos produtivos sem repensar a estrutura fundiária, o acesso a tecnologias alternativas, o alimento como direito social, empregos dignos, saúde plena e o respeito a todas as formas de vida. Ela tem como princípio a mudança no modelo de desenvolvimento adotado, não apenas para o campo e do pacote tecnológico, mas pensar o desenvolvimento como um todo, levando em conta as questões sociais, culturais, ambientais e econômicas.

Foto: Geani Paula/Assesoar

A produção biodiversa, o debate do acesso aos alimentos, a qualidade dos alimentos, a renda das famílias, a saúde e a preservação ambiental são algumas das bandeiras da agroecologia. Dessa forma, ser agroecologia é combater todas as formas de violência e discriminação, é fortalecer a reforma agrária popular, preservar territórios dos povos tradicionais, como indígenas e quilombolas, é acessar os recursos naturais com vistas a sua preservação e ampliação para as futuras gerações, é a lutar pela qualidade de vida no campo e na cidade. Enfim, é defesa de todas as formas de vida!

Se tem agroecologia, não tem fome!

A agroecologia no Sudoeste do Paraná

Na região Sudoeste do Paraná temos a presença da Rede Ecovida de Agroecologia, através do Núcleo Sudoeste, a qual articula as famílias que produzem de forma agroecológica no processo participativo de certificação da produção.

Atualmente são 12 grupos com certificados ativos, distribuídos em 14 municípios, e outros em processo de criação. Estão certificadas agroindústrias de doces e conservas, sucos, plantas bioativas e queijarias, além da produção in natura das famílias, como hortaliças, frutas e cereais.

Foto: Assesoar

O Núcleo Sudoeste é acompanhado pelo Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (CAPA/FLD), Núcleo Verê, pela Associação de Estudo, Orientação e Assistência Rural (Assesoar) e pela Cooperativa Central da Agricultura Familiar Integrada do Paraná (Coopafi) Francisco Beltrão. São 47 famílias certificadas e mais de 30 em processo de certificação. As famílias, além de abastecerem as feiras locais, a entrega de sacolas e venda de casa em casa, atendem a boa parte da alimentação que chega até as escolas via programas institucionais (PNAE, Compra Direta).

Entre as famílias que fazem parte da Rede está a de Deise Kerkhoff e Edenir Basso, do município de Marmeleiro. Em uma unidade de produção e vida familiar de 4,2 hectares, eles produzem 53 variedades de hortaliças, frutas, plantas bioativas e cereais. A principal forma de comercialização é a direta: na feira municipal, entrega de casa em casa e em programas institucionais.

Já Cleonice Freitas Gurgel e Gilson Gurgel, de Francisco Beltrão, possuem uma pequena queijaria, que processa mensalmente 5.400 litros de leite, resultando em 900 kg de queijo que é todo comercializado nas feiras municipais.

Em se tratando de raízes, com foco específico na alimentação escolar, Vonibaldo Korb, também de Francisco Beltrão, em sua unidade de produção e vida familiar de 10 hectares, produz semanalmente 300 kg de batata doce e 200 kg de mandioca. Os alimentos são comercializados através da Cooperativa Central da Agricultura Familiar Integrada do Paraná, de Francisco Beltrão.

Atualmente a Coopafi/FB chega a comercializar 6500 kg por mês de alimentos agroecológicos. Entre os cooperados/as, hoje são nove agricultores certificados e seis em transição.

A Plataforma da Comida Saudável

A transição e produção agroecológica, a agroindustrialização e canais de comercialização direta dos alimentos, na perspectiva de articulação campo e cidade, fazem parte das diretrizes da “Plataforma da Comida Saudável”, projeto popular coordenado pelo Fórum Regional das Organizações e Movimentos Populares do Campo e da Cidade do Sudoeste do Paraná. Além de realizar ações articuladas que ampliem a produção e acesso de alimentos saudáveis, as organizações e movimentos visam construir e fortalecer processos formativos e organizativos na perspectiva da incidência política e garantia de direitos da classe trabalhadora.

Dentre as principais diretrizes das propostas está o acesso a alimentos de forma direta e com preços justos para a classe trabalhadora. Pesquisa realizada pela UTFPR de Pato Branco sinaliza que os preços médios dos principais alimentos agroecológicos (banana, brócolis, cenoura, limão e tomate) praticados nas feiras dos bairros, entre setembro/2020 e agosto/2022, permaneceram com valor médio abaixo dos mesmos alimentos convencionais e orgânicos comercializados em supermercados da cidade. Isso evidencia que a proposta da Plataforma da Comida Saudável é importante tanto para o campo como para a cidade.

Políticas públicas para a agroecologia

Para maior avanço da agroecologia, é fundamental a existência e implementação de políticas estruturantes, tanto no âmbito municipal como estadual e federal, que a tenham como foco estratégico.

No âmbito federal, através do Decreto Presidencial nº 7.794, em 2012 foi instituída a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO). Esta, após muitos anos sem efetividade concreta na aplicação das ações previstas em seu plano, foi retomada pelo governo federal no lançamento do último plano safra (28 de junho). Junto com a revisão do decreto da política institui-se o retorno da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) e a Câmara Intersetorial de Agroecologia e Produção Orgânica (CIAPO).

No estado do Paraná, desde 2014, a Câmara Setorial de Agroecologia e Agricultura Orgânica, vinculada ao Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar do Paraná (CEDRAF), tem buscado incidir através da proposição de minuta de projeto de lei para criação de uma Política Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica. A Articulação Paranaense de Agroecologia (APRA), criada mais recentemente, se somou a essa pauta. No entanto, após várias tentativas de incidência, até o momento não houve avanços. Espera-se que com a recente formação da Frente Parlamentar da Agroecologia e Economia Solidária o Projeto de Lei nº 823/2017, apresentado pelo deputado Lemos (PT), seja aprovado integralmente pela Assembleia Legislativa e crie-se então a política estadual. Na primeira votação, no final de 2022, o plenário da Assembleia aprovou um texto substitutivo ao projeto, o qual desconfigurou a proposta original.

A perspectiva de que no Paraná a alimentação escolar seja 100% orgânica até 2030 é um ótimo incentivo ao aumento da produção agroecológica. No entanto, para que isso seja possível é fundamental não só criar a demanda, mas avançarmos no fortalecimento do acompanhamento técnico voltado para a agroecologia, um crédito com visão sistêmica da produção agroecológica, facilitação das tecnologias ecológicas, incentivo à agroindustrialização, ao cooperativismo e ao associativismo.

Nos meses de julho e agosto aconteceram as Conferências Municipais, Regionais e Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, organizadas pelos Conselhos Municipais de Segurança Alimentar e Nutricional. As conferências trazem como tema “Erradicar a fome e garantir direitos com comida de verdade, democracia e equidade”. Na sequência delas, com a retomada do Consea, em âmbito nacional, em dezembro ocorrerá a 6º Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Esses espaços são um chamado à sociedade civil e ao poder público para celebrar os avanços no âmbito da segurança alimentar e nutricional, olhar para os limites ainda existentes e assim indicar políticas, programas e ações que fortaleçam a produção e o acesso à comida de verdade.

Salientamos a importância das políticas em todas as esferas, com um plano de ação e projetos articulados, que contemplem as frentes necessárias para o fortalecimento da produção agroecológica, em uma perspectiva duradoura. Para isso, é fundamental organizações e movimentos populares estarem articulados na construção e proposição de políticas públicas, assim como atuantes no fortalecimento dos espaços participativos de diálogo com instância de governos, visando incidir, efetivar e monitorar as políticas conquistadas.

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