Por: Lizely Borges e Naiara Bittencourt/ Terra de Direitos

3ª Vara de Curitiba reconhece o direito de povos tradicionais de participarem de decisões sobre temas de impacto social e ambiental.

Em meio à forte crise epidemiológica e crescente ameaça à democracia, com progressiva obstrução da participação popular na tomada de decisões sobre temas de interesse público, a 3ª Vara da Fazendo Pública de Curitiba proferiu importante sentença nesta quarta-feira (14): a confirmação da liminar na Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Paraná (MP-PR) sobre a Resolução nº 22/1985 que estabelecia distâncias mínimas para aplicação de agrotóxicos no Paraná.

A decisão, na prática, restabelece o mínimo de 250 metros de distância de mananciais de captação de água, núcleos populacionais, escolas, entre outros, para aplicação terrestre de agrotóxicos e ainda garantia a distância mínima de pulverização aérea de 500 metros, esta última também prevista por normativa federal do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

Com argumento de que a normativa fixada nos anos 80 “está desatualizada” e em nome da “modernização”, a resolução que fixava distância mínima foi revogada pela Resolução Conjunta 01/2018, em uma decisão do governo do Paraná emitida em dezembro de 2018. 

Assinada pela Casa Civil, Secretarias Estaduais do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Sema) e da Agricultura e do Abastecimento (Seab), além do Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e Agência de Defesa Agropecuária do Paraná, a Resolução Conjunta que pôs fim à fixação de distância mínima atendia aos interesses da Federação da Agricultura do Paraná (Faep), articulação estadual de vínculo com o agronegócio. A Faep foi a solicitante da revogação da norma e também a única entidade com manifestação considerada pelo Grupo de Trabalho instituído (Portaria nº 187/2017) para rever a resolução. 

A ausência de norma que regule a fixação de distância mínima para aplicação de agrotóxicos no estado só não permaneceu porque, em fevereiro de 2019, a 3ª Vara acolheu em decisão liminar a Ação movida pelo Ministério Público. Com a decisão desta quarta-feira volta a regra de respeito das distâncias de uso de agrotóxicos próximo a rios, mananciais, casas e escolas, entre outros

Na decisão o juiz Roger Vinicius Pires de Camargo Oliveira manifesta que “nos princípios da precaução, prevenção e da vedação ao retrocesso em matéria ambiental, da participação, da legalidade, bem como em prol dos direitos à vida (caput do artigo 5.º da CF/88), à saúde (artigo 6.º da CF/1988) e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225 da CF/1988), confirmando a tutela de urgência liminarmente concedida ao autor”, aponta um trecho da decisão. 

Direitos dos povos e comunidades tradicionais na decisão 
Um forte ponto a ser destacado na sentença é que ela reconhece também o direito da sociedade de participarem nos debates democráticos e nas tomadas de decisão, especialmente as que se referem ao meio ambiente. 

Defensores das distâncias mínimas para aplicação dos agrotóxicos, a Terra de Direitos, a Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia (Aopa), a Associação Quilombola Invernada Paiol de Telha Fundão, a Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural (Assesoar) e o Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (CAPA) – Verê participavam na Ação Civil Pública na condição de amicus curiae, um instrumento jurídico que permite que a sociedade participe de debates de matérias de interesse público e relevante. 

A decisão ressalta, com destaque, o direito dos povos e comunidades tradicionais de participar nas normas que interfiram diretamente nos seus modos de vida, como é a aplicação de agrotóxicos. Na sentença, o juiz faz referências a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do qual o Brasil é signatário, e que foi internalizada pelo Decreto n.º5.051/2004, ao destacar a necessidade de consulta prévia, livre e informada pelo poder público à população afetada por medidas adotadas pelo governo, como uma atualização de uma normativa. 

“Tudo isso para dar concretude a um comando constitucional e efetivar o denominado Estado Democrático de Direito (caput do artigo 1.º da CF/1988), dando “voz”, também, aos representantes de associações de defesa do meio ambiente e de povos e comunidades tradicionais, os quais não foram ouvidos”, aponta outro trecho da decisão.

O juiz ainda faz referência à contaminação por agrotóxico da Comunidade Quilombola Paiol de Telha. Localidade em Reserva do Iguaçu (PR) as famílias do território tradicional tiveram suas terras contaminadas no ano de 2017 pela aplicação de agrotóxicos. O agravamento da saúde de moradores da comunidade em razão da contaminação foi averiguado por vistoria do Ministério Público do Federal. “Normas estas da Convenção n.º169 da OIT que devem ser observadas e respeitadas na espécie, uma vez que houve a aplicação de agrotóxico, em desacordo com a legislação, no limite territorial da Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha, situada na Reserva do Iguaçú, no Município de Pinhão/PR, em que agravou a saúde dos seus moradores, segundo restou averiguado pelo Ministério Público Estadual do Paraná, isso no Termo de Vistoria n.º n.º46/2017”, afirma. 

A Federação da Agricultura do Estado do Paraná também requereu ingresso na Ação Civil Pública como amicus curiae. Interessados na flexibilização das distâncias mínimas e solicitante da revogação da norma que fixa distâncias, a FAEP teve seu pedido recusado pela 3ª Vara. “Ocorre que, tradicionalmente, o amicus curiae não pode ter interesse pessoal algum quanto aos rumos do processo, pois sua atuação, que era justificada em prol da democracia participativa e desinteressada, passaria a se transmutar em intervenção que somente se justifica para fins de atender aos seus próprios interesses”, afirma o juiz. 

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