“Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.” Manuel Bandeira
Por: Suzana Gotardo de Meira e Kellyn Cristina Tavares Ferreira.
Apresentamos neste texto alguns dados e reflexões acerca do que a fome causa no desenvolvimento do ser humano, com ênfase à atual alimentação oferecida para as crianças nos primeiros anos de vida. Consideramos também de forma rápida a alimentação acessada por adolescentes e pela população em geral. Para concluir, apontamos aquilo que acreditamos ser uma das possíveis soluções para as questões relacionadas à fome.
Todas as experiências vivenciadas durante a infância contribuem para a constituição do ser enquanto sujeito, situações boas ou ruins ficam registradas na criança e podem ter impacto na vida adulta, porque o cérebro ainda está em formação e funciona como uma esponja, absorvendo todas as experiências. Dependendo das situações vivenciadas, a criança poderá desenvolver sérios problemas psicológicos na vida adulta. Por isso a importância de ensinar valores morais, sociais, trabalhar as emoções e comportamentos adequados, a fim de desenvolver as habilidades sociais infantis.
Porém não só as situações emocionais podem desencadear problemas, as privações sofridas também contribuem para que as crianças desenvolvam esquemas disfuncionais no aspecto psicológico. Quando as necessidades básicas como alimentação, higiene, segurança, moradia e sustento não são garantidas se tem aí um desencadeador de sofrimento mental que pode causar impactos e traumas na vida adulta.
Esses esquemas disfuncionais citados estão relacionados à forma como vamos encarar situações futuras e pautar nossas escolhas, como por exemplo ao fazer uso de substâncias tóxicas, ao vivenciar situações de angústia, depressão e qualquer outro sofrimento de ordem psíquica.
De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2019), em seu resumo executivo sobre a situação mundial da infância, consumir alimentos saudáveis nos primeiros anos de vida é fundamental para o crescimento adequado do corpo e do cérebro. O que faz com que a criança alcance seu máximo potencial de desenvolvimento.
Infelizmente na maioria dos casos a alimentação adequada não ocorre. E aqui devemos considerar não só a falta de alimentos (que são os casos em que a criança e a família não possuem nenhum tipo de alimento para consumir) como também a fome oculta, caracterizada pela falta de vitaminais e minerais essenciais para o desenvolvimento. Temos também o sobrepeso e a obesidade, que trataremos adiante.
Vivemos em um mundo em transformação, e consequentemente há que se considerar também a alimentação. Nas últimas décadas, a crescente migração da população para os meios urbanos; o ingresso das mulheres na força de trabalho formal, “equilibrando as responsabilidades profissionais com seu papel de cuidadoras principais e, geralmente, com pouco apoio das famílias, dos empregadores e da sociedade”(UNICEF, 2019, p. 2. Situação Mundial da Infância. América Latina e Caribe); mudanças climáticas; perda de biodiversidade; danos ambientais e aumento excessivo do uso de agrotóxicos nos fazem questionar: podemos alimentar essa geração de crianças de maneira sustentável e saudável? E as demais gerações que virão?
Podemos dizer que, dentre tantos fatores, os citados acima são os principais responsáveis pela mudança do que comemos. As refeições tradicionais, elaboradas com alimentos produzidos pela própria família, por cooperativas ou em cadeias curtas hoje são frequentemente substituídas por dietas modernas, ricas em gorduras e açúcares, pobres em nutrientes essenciais.
“As deficiências de vitaminas e minerais essenciais – fome oculta – roubam a vitalidade em todas as fases da vida e comprometem a saúde e o bem-estar de crianças, adolescentes e mães.”(UNICEF, 2019, p. 2. Situação Mundial da Infância. América Latina e Caribe). Nos primeiros mil dias de vida, a falta de nutrição adequada é ainda mais comprometedora, pois crianças submetidas à privação alimentar têm o crescimento afetado e podem, dessa forma, nunca alcançar o pleno potencial físico e intelectual. A subnutrição se dá quando a criança come mal e pouco, a falta dos alimentos adequados compromete o desenvolvimento cerebral e cognitivo, afetando significativamente o processo de aprendizagem e desempenho escolar, além de oferecer riscos à saúde, como baixa imunidade, infecções e outras doenças que podem até levar à morte.
Outra questão importante é a obesidade, doença que tem origem multifatorial, na qual a qualidade dos alimentos ingeridos também tem contribuído.
O Ministério da Saúde, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS, 2020), aponta que aproximadamente 60% da população adulta de brasileiros têm excesso de peso, ou seja, cerca de 96 milhões de pessoas, e 1 em cada 4 são obesas, totalizando mais de 41 milhões.
A influência da mídia
O Guia Alimentar para a População Brasileira em 2014 já apontava que a cada nove comerciais veiculados na televisão sobre alimentos seis “se referem a produtos comercializados nas redes de fast food, salgadinhos “de pacote”, biscoitos, bolos, cereais matinais, balas e outras guloseimas, refrigerantes, sucos adoçados e refrescos em pó, todos esses ultraprocessados. A maioria desses anúncios é dirigida diretamente a crianças e adolescentes”. (Guia Alimentar para a População Brasileira, 2014, p. 118).
Os comerciais mostrados na televisão são regulamentados, e mesmo assim apresentam esses dados. Quando partimos para as redes sociais, é enorme a quantidade de influenciadores digitais, grupos de mães (principalmente no WhatsApp) que ofertam todo tipo de “dicas” sobre alimentação saudável, fórmulas artificiais, os ditos leites em pó e os mais variados tipos de suplementos, ou seja, o marketing de produtos que concorrem com o aleitamento materno e comida de verdade é muito elevado.
O estímulo ao consumo diário desses produtos nas redes sociais é muito forte, pois mostra “a vida perfeita”. Diante dos efeitos tóxicos da comunicação pelas redes sociais, se faz necessária a regulação do marketing.
Amamentação – hábitos saudáveis
Nossa primeira experiência alimentar é ligada intimamente à família, na qual iniciamos o desenvolvimento dos nossos hábitos. Nela vivenciamos a primeira experiência nutritiva: o leite materno. “Além dos nutrientes necessários ao desenvolvimento do recém-nascido, a amamentação é um momento de prazer e afeto que estreita o vínculo entre mãe e bebê. Esses valores – prazer, afeto, vínculo e conforto – são fundamentais na primeira infância e continuam a ser importantes por toda a vida. O ato de comer é mais do que a satisfação de necessidades fisiológicas: ao nos alimentarmos, também atendemos a exigências emocionais.” (UNICEF, 2019, p. 9-10. Comer bem e melhor, juntos). Depois da família, os hábitos alimentares são formados a partir da experiência pessoal, da interação social, da exposição à mídia, da cultura e da região em que se vive e das condições de acesso aos alimentos, dentre vários outros aspectos.
A deficiência nutricional, que na maioria das vezes é influenciada por fatores sociais, econômicos e/ou políticos, pode afetar a saúde mental das pessoas. O surgimento ou a piora de doenças psicopatológicas como transtorno de ansiedade, depressão, transtorno obsessivo compulsivo, bipolaridade, esquizofrenia e doenças degenerativas como o Alzheimer podem ter relação direta com a pobreza extrema, fome e outras privações das necessidades básicas às quais os indivíduos são submetidos.
Durante e por causa da pandemia, a crise de alimentação saudável de crianças pequenas se aprofundou ainda mais. O fechamento de creches e escolas fez com que muitas crianças, principalmente de famílias pobres, perdessem o acesso à alimentação escolar.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em relatório publicado em junho de 2022, a depressão e a ansiedade aumentaram mais de 25% no primeiro ano da pandemia de Covid-19. Um dado que nos chama a atenção é o de que 3,6% da população mundial sofre de ansiedade e o Brasil apresenta a maior taxa de transtorno de ansiedade do mundo, atingindo 9,3% da população.
Comumente tratamos dos efeitos, quando as doenças já estão instaladas, e não das causas. Nesse sentido, temos papel fundamental no combate à fome e à má nutrição, principalmente na primeira infância, em ato de política e resistência é preciso abordar esse tema que há anos vem causando consequências na sociedade e mutilando famílias.
Aqui cabe dizer que as relações familiares são muito afetadas pela fome. Quando os pais e mães legalmente responsáveis pela criação não conseguem prover o sustento dos filhos, começam a se questionar sobre sua capacidade de colocar em prática uma maternagem ou paternagem adequada. Isso faz com que se sintam incapazes e irresponsáveis, com sentimento de culpa e impotência. Para os filhos há o impacto na desconstrução da visão dos pais que nutrem, o que muitas vezes desencadeia o trabalho infantil na busca pelo alimento, além de outras consequências nas relações familiares.
O Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) tem trazido algumas reflexões pertinentes ao tema, com o intuito de enquadrar a fome como questão coletiva e não individual. O problema da fome não é apenas de quem passa fome, mas de toda a sociedade: enquanto houver no mundo alguém passando fome, teremos falhado como coletivo.
Como descrito por Nilson Lira Lopes, militante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) no Rio Grande do Sul: “A fome é a maior violência a que se pode submeter um ser humano e nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e em um sentido tão nocivo quanto a fome. Eu sou a própria fome! Sou a fome personificada, porque a fome não está apenas no meu corpo, mas ela está na minha alma, na minha genética, na minha ancestralidade, portanto ela está em todas as dimensões da minha existência”.
Possíveis soluções para o combate à subnutrição na infância
Quando trazemos dados sobre crianças recém-nascidas que passam fome, é impactante aos olhos da sociedade. Quando aprofundamos as pesquisas para compreender que a subnutrição não trata apenas da falta de alimentos, mas sim da qualidade, e do que é consumido, começamos a nos questionar que fome é essa. A porcentagem daqueles que não têm acesso a nenhum alimento é significativa e não podemos desconsiderá-la. Visivelmente a quantidade de crianças e da população em geral com sobrepeso e obesidade evidencia que a forma atual como nos alimentamos tem nos deixado doentes.
São vastas as leis internacionais, nacionais e regionais que garantem a alimentação adequada como direito social. Garantida no papel, não reflete a realidade, e a sua viabilização é um desafio constante, principalmente para a classe trabalhadora, a mais prejudicada e interessada que chegue à mesa da sua família não só o arroz com feijão, quando chega, mas a “tal” alimentação adequada, ou seja, esse direto social por muitos está longe de ser alcançado.
Para que a nutrição das crianças seja melhorada, os sistemas alimentares precisam fornecer dietas nutritivas, seguras, acessíveis e sustentáveis para todas elas. Um conjunto de fatores precisa ser considerado, como mostra a figura: sistemas de saúde, água e saneamento, educação e proteção social devem atuar de maneira coordenada. Essa abordagem conjunta da nutrição infantil pode ajudar a garantir que as famílias tenham acesso a dietas saudáveis e que as crianças recebam os serviços de nutrição necessários para desenvolver todo o seu potencial.
Há décadas a Assesoar e tantas outras organizações/instituições defendem uma alimentação saudável e sustentável, pela prática da agroecologia, se não na sua totalidade, mas com manejos menos degradantes ao meio ambiente. Com o apoio de programas institucionais e políticas públicas para o cultivo, aquisição e distribuição de alimentos, em quantidade e qualidade nutricional adequada a cada fase da vida do ser humano, deve ser possível o acesso a alimentos saudáveis, que nos garantam desenvolvimento pleno.
É concreta a qualidade de vida e saúde daqueles que têm acesso, e mais ainda daqueles que crescem em um meio equilibrado, cultivam e consomem alimentos saudáveis.
Durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida na primeira semana de julho de 2023, em Brasília, foi anunciada pela ministra da Saúde, Nísia Trindade, a destinação de 200 milhões para cuidados com a saúde mental. A conferência teve participação de representantes da sociedade civil, entidades e movimentos sociais, que debatem temas prioritários para saúde pública e ampliação da assistência à saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS).
Não podemos permitir retrocesso em direitos humanos, os esforços coletivos e políticos devem ser para ampliar o acesso a alimentos saudáveis por toda população, o que vai nos permitir ter uma população mais saudável física e mentalmente.
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