Por: Elisângela Belandi Loss, Felipe Fontoura Grisa , Janete Rosane Fabro e Airton Luis Freire/ Texto publicado na edição 277 da Revista Cambota

O modelo estrutural organizado pelo capitalismo, sob o qual a economia e a produção são direcionadas, prioritariamente para atender demandas globalizadas, aprofunda-se em uma crise. Essa crise, em grande parte chamada apenas de econômica, tem seus agravos mais profundos e duradouros nos aspectos sociais e ambientais; porém, esses agravos costumam ser tratados de forma marginalizada, pois para o modelo vigente, eles devem estar a serviço da economia.

Nesse contexto, temos observado uma crescente ofensiva aos recursos naturais e aos direitos sociais, visando respostas à uma economia cada vez mais concentrada. Essa concentração é observada nos setores financeiro e produtivo por meio da estruturação crescente dos grandes monopólios. No sistema agroalimentar, da terra até as prateleiras, acirra-se o domínio de poucas corporações multinacionais que, por meio da construção de mecanismos de dependência, têm promovido a padronização global da produção e do consumo de alimentos.

A recente pandemia tem contribuído para aflorar ainda mais as contradições desse sistema, o qual tem seus pilares nos mais diversos setores ameaçados diante de uma trágica crise civilizatória. Diversos estudos científicos têm demonstrado que a eclosão de novos vírus pode ser consequência de desequilíbrios ambientais provocados pelas ações humanas, entre elas o modelo de produção agrícola industrial (monocultural e de escala) que, ao avançar “sem freios” sobre os novos territórios, causa impactos para além deles. Logo, esses pilares precisam ser reconstruídos com urgência sobre outra perspectiva de projeto.

Esses inúmeros impactos evidenciam a importância de uma guinada de rumo, sob o qual ações e políticas públicas devem visar, em especial, a segurança e a soberania alimentar. Ou seja, as regiões precisam ter maior autonomia na produção de seus alimentos, com o abastecimento local e territorial prioritário frente a lógica exportadora, que tem se mostrado frágil ao mesmo tempo em que está totalmente subordinada aos interesses econômicos e geopolíticos acirrados nesse contexto de crise.

Consorciamento de fruticultura e hortaliças no UPVF da família Basso, em Marmeleiro.

Nesse contexto, é importante questionar o que aconteceria com o agronegócio brasileiro se a China deixasse de comprar nossa soja ou carne em novos e dinâmicos acordos comerciais. Como ficaria o abastecimento alimentar de algumas regiões se a logística tivesse que parar por algumas semanas? Para além de fornecimento e acesso, também é preciso que se discuta a forma de produção e de comercialização, pois desde a concentração de terra até os corredores dos supermercados estão inseridas inúmeras e criminosas práticas sociais e ambientais que historicamente são denunciadas pelos movimentos e organizações populares, ao mesmo tempo em que anunciam experiências que contrapõem esse modelo.

Entre essas experiências estão as comercializações locais e territoriais que, por meio da interação campo-cidade, têm pautado a alimentação como direito, estimulado a produção local e fortalecido a agricultura familiar e a agroecologia como forma organizativa e produtiva para o campo. Para quem consome, essa prática tem possibilitado ampliar os hábitos de uma alimentação saudável e contribuir na dinamização e no fortalecimento da economia local. Já para as famílias agricultoras, resulta em mais geração de renda e autonomia frente às variações e às oscilações dos mercados e seus atravessadores.

Na atual conjuntura da pandemia, as comercializações locais e territoriais têm-se mostrado como importante instrumento de resposta aos impactos na produção e no acesso aos alimentos. Diversos setores da sociedade têm se mobilizado para fortalecer ou criar experiências nesse sentido, principalmente a partir das vendas diretas. A procura pelos espaços já existentes e a boa aceitação das novas experiências reforçam outras relações e transformações possíveis e que estas podem garantir uma vida digna às famílias agricultoras, o acesso a uma alimentação saudável e a recuperação das diversidades locais.

Feira do Bairro Jardim Primavera em Pato Branco.

A defesa pelo fortalecimento da produção de alimentos saudáveis e da comercialização direta é uma luta históricas entre as organizações e os movimentos populares e traz consigo uma perspectiva de sociedade, propõe um projeto de desenvolvimento com caráter transformador, com outras formas de relações para além da comercial e na contramão da lógica hegemônica.

Plataforma da Comida Saudável — Fortalecendo a produção local e a comercialização direta no Sudoeste do Paraná

Por intermédio do Fórum Regional das Organizações e Movimentos Sociais Populares do Campo e da Cidade do Sudoeste do Paraná, está sendo desenvolvida nessa região a Plataforma da Comida Saudável, uma articulação regional exercida, de início, por meio da articulação e da interação entre campo e cidade, em torno do alimento saudável.

A proposta objetiva que ações estratégicas e práticas efetivas em torno da produção de alimentos saudáveis e do consumo consciente resultem em qualidade de vida e em conservação ambiental, bem como, almeja que a ampliação de uma consciência crítica fortaleça a construção de um projeto popular de desenvolvimento. Entre as ações realizadas pela Plataforma na região, estão as seguintes:

  • criação de comissões municipais da Plataforma da Comida Saudável;
  • criação e fortalecimento das feiras livres;
  • comercialização de cestas de alimentos por intermédio de mecanismos digitais;
  • fortalecimento do abastecimento de alimentos nos programas institucionais;
  • consolidação de pontos fixos de comercialização por meio de cooperativas;
  • implantação de tecnologias e novas experiências produtivas para a agricultura familiar;
  • inserção de novas famílias no processo de transição agroecológica;
  • certificação de novas famílias pela Rede Ecovida de Agroecologia;
  • realização de campanhas, seminários e oficinas com a temática alimentar envolvendo trabalhadores(as) do campo e da cidade;
  • realização de intercâmbios entre campo e cidade;
  • apoio a iniciativas de agricultura urbana;
  • criação de grupos de consumidores;
  • criação de políticas públicas;
  • realização de processos formativos com grupos de lideranças;
  • desenvolvimento de atividades pedagógicas referentes a produção de alimentos e alimentação com escolas do campo e da cidade;
  • criação de núcleos de estudos e áreas de pesquisa e validação de tecnologias agroecológicas em instituições de ensino e pesquisa da região.

Ao ser implementada nos municípios, a estratégia regional da Plataforma Comida Saudável toma forma e características locais com o desenvolvimento de ações a partir de sua realidade, por meio das diferentes formas e dinâmicas locais e por meio da articulação das organizações, das entidades, dos coletivos e dos grupos representativos que se estendem para além da composição do Fórum. Como resultado temos o fortalecimento da agroecologia, da agroindustrialização e da cooperação, que contribuem para a melhoria da renda das famílias agricultoras e possibilitam o acesso a um alimento de melhor qualidade às trabalhadoras e aos trabalhadores urbanos, criando espaços organizativos e de incidência. Diante das dificuldades explicitadas neste momento de pandemia, em uma recente ação da Plataforma, o Fórum Regional, juntamente com outras organizações sindicais, populares e estudantis, e o Comitê Resistência e Solidariedade, lançaram uma campanha de arrecadação de alimentos e de dinheiro. Os alimentos doados e comprados prioritariamente de agricultores(as) e de cooperativas da agricultura familiar estão sendo organizados pelas organizações e movimentos em cestas, as quais são distribuídas para famílias em situação de vulnerabilidade, no campo e na cidade, nos municípios da região.

Entrega de alimentos a famílias Quilombolas, no município de Palmas

Somando forças: construindo a segurança e a soberania alimentar

Assim como no Sudoeste, movimentos sociais e organizações populares articulados de diversas regiões do Estado e do País estão desenvolvendo ações de interação campo-cidade a partir da produção e da comercialização direta de alimentos. Essas diversas frentes somadas estão fortalecendo a segurança alimentar e construindo soberania. A seguir, relataremos experiências realizadas por organizações e movimentos parceiros em outras regiões do Paraná.

Região Metropolitana

Na Região Metropolitana do Estado, a Associação Vida Para Todos (ABAI), em parceria com o grupo Cultivando Vidas e demais organizações do município de Mandirituba e região, tem fortalecido a produção agroecológica e realizado experiências de comercialização direta. Uma dessas experiências é a comercialização de cestas de alimentos para trabalhadores e trabalhadoras de Curitiba. Atualmente, são comercializadas aproximadamente 50 cestas semanais, compostas por diversos alimentos.

Segundo as organizações, a preocupação dos “consumidores” com a origem e com a qualidade dos alimentos aumentou. Também impulsionada pelo contexto da pandemia, observa-se a demanda crescente por alimentos locais e saudáveis e a dificuldade das organizações para supri-la. Para aumentar a oferta de alimentos, tem-se buscado o aumento da diversidade produtiva e a inserção de novas famílias agricultoras. Para isso, em parceria com a Secretaria de Agricultura do município de Mandirituba, as organizações estão fazendo um levantamento de famílias interessadas em se inserir nesse processo.

Nessa experiência de comercialização, o Grupo Cultivando Vidas e a ABAI somavam 11 famílias agricultoras envolvidas. Recentemente, mais 6 famílias somaram-se ao coletivo e poderão formar um futuro grupo para certificação orgânica.

Além da comercialização das cestas, juntamente com o grupo de jovens Subverta, de Curitiba, as organizações têm realizado ações de solidariedade por meio da compra de alimentos das famílias agricultoras para serem doados às comunidades carentes. Outra ação que pretendem realizar com essa população é a implantação de hortas comunitárias.

Região Oeste

No Oeste do Paraná, organizações e movimentos sociais também mostram que a agroecologia é o caminho e que o modelo agrícola a ser seguido deve gerar alimentos saudáveis, essenciais para a vida, e não para o lucro. Famílias agricultoras e camponesas da região, organizadas por meio de cooperativas, associações e grupos da Rede Ecovida de Agroecologia, comercializam suas produções em feiras e em centros de venda por entregas de cestas e também pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Foto: Diangela Menegazzi

O Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (CAPA), Núcleo de Marechal Cândido Rondon, está diretamente envolvido na construção desses processos, prestando assessoria às famílias e às suas organizações. Parte desse trabalho é feita em parceria com a Itaipu Binacional por meio do Programa de Desenvolvimento Rural Sustentável.

No centro da cidade de Marechal Cândido Rondon, há uma loja/feira permanente da Associação Central de Produtores Rurais Ecológicos (ACEMPRE). Os produtos das associadas e associados também compõem cestas entregues a famílias urbanas desta cidade e de outros municípios da região, além de serem entregues ao PNAE municipal. Somente em abril de 2020, 17.745 quilos de alimentos livres de agrotóxicos e provenientes das unidades familiares foram comercializados por meio da ACEMPRE.

Iniciativas de venda direta também ocorrem em Foz do Iguaçu, uma delas é realizada pelo grupo da Rede Ecovida chamado Esperança Agroecológica. O grupo reúne cinco famílias agricultoras de Ramilândia que abastecem quatro feiras com produtos agroecológicos. Além disso, fornece alimentos para compor cestas entregues na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e em outros pontos da cidade. Durante a pandemia, quando as feiras da cidade foram suspensas, as entregas continuaram e, até mesmo, foram fortalecidas por meio de grupos de consumidores na internet.

A organização das famílias feita por meio das cooperativas tem sido outro fator importante para a produção e o fornecimento massivo de alimentos a programas governamentais na Região Oeste. Em 2019, somente a Cooperativa da Reforma Agrária e Agricultura Familiar (COPCRAF), que abrange os municípios de Cascavel e de Santa Tereza do Oeste, entregou ao PNAE 171.866 quilos de alimentos produzidos em sistemas que adotam práticas de produção agroecológica.

Agricultora Eva Solange, do Assentamento Valmir Mota em Cascavel, sócia da cooperativa COPCRAF

No contexto da pandemia, produtos da agricultura familiar e camponesa também chegaram a famílias em vulnerabilidade social de municípios da Região Oeste por meio de ações solidárias. Recentemente, cerca de 21 toneladas de alimentos foram entregues pelo CAPA Rondon a 712 famílias de 14 comunidades indígenas de Terra Roxa e de Guaíra. A ação foi possível graças aos recursos disponibilizados pelas organizações Fundação Banco do Brasil, Sínodo do Rio Paraná da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), Juventude Rural do Interior da Baviera e Organização Pão Para o Mundo.

Região Noroeste

A Cooperativa de Agropecuária Vitória (COPAVI), fundada em 1993 no município de Paranacity, é a experiência mais longa de produção coletiva e solidária no Estado. Criada a partir do Assentamento Santa Maria, a COPAVI surgiu a partir da decisão dos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que optaram pela produção conjunta na área. A Cooperativa é formada por 25 famílias assentadas e tem a agroecologia como base. Os principais alimentos produzidos, beneficiados e comercializados são a cana de açúcar e seus derivados (açúcar, melado e cachaça); o leite, que é pasteurizado e também transformado em iogurte e queijo; as hortaliças e legumes; além dos panificados, que são produzidos em uma padaria comunitária.

A COPAVI faz parte da Rede Ecovida de Agroecologia e integra o Núcleo Libertação Camponesa, pelo qual tem alguns de seus alimentos certificados, enquanto outros estão em processo de transição. Entre os principais espaços e formas de comercialização da produção estão o espaço da própria sede da Cooperativa, as vendas diretas de cestas de alimentos (solicitadas por aplicativo), a alimentação escolar de todo o Paraná, os mercados e as lojas locais e de outras regiões.

Produção de hortaliças da cooperativa

Integrando as iniciativas de ações solidárias na situação atual de pandemia, por meio da campanha nacional de solidariedade do MST, a Cooperativa realizou doações de alimentos para serem distribuídos a famílias em situação de vulnerabilidade. A organização também está inserida nas arrecadações de recursos on-line, como, por exemplo, o financiamento coletivo para o Fundo Emergencial Enfrente. Nesta ação, as arrecadações aconteceram a partir de uma plataforma digital eatenderam campanhas emergenciais em regiões urbanas que concentram famílias em maior vulnerabilidade. Com o montante arrecadado, foram produzidas e entregues cestas de alimentos saudáveis da agricultura familiar a essas famílias nas cidades de Paranacity, Cruzeiro do Sul e Inajá. Os alimentos foram comprados das famílias agricultoras do Assentamento Santa Maria/COPAVI e de outras famílias da região e as entregas foram feitas pela Associação das Mulheres do Assentamento Santa Maria (AMAR), em parceria com os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) dessas cidades.

O papel do Estado

As iniciativas que ocorrem no Sudoeste do Paraná, via Plataforma Comida Saudável, bem como as experiências das outras regiões, poderão ser consolidadas e avançadas com maior rapidez e com melhores condições com a existência de políticas públicas efetivas de promoção da produção de alimentos saudáveis, da agroindustrialização, de armazenamento e de espaços de comercialização. Como parte dessas políticas, também é preciso avançar em normatizações sanitárias condizentes com a realidade diversificada e produtiva da agricultura familiar e camponesa.

A história nos mostra que avanços são possíveis quando existem políticas que fortalecem a temática alimentar nos seus mais diversos aspectos. Quando recebem condições, o campo popular, a agricultura familiar e camponesa, a agroecologia e a ciência respondem; no entanto, o contexto atual expõe as fragilidades geradas em razão dos retrocessos nessas políticas.

Não há uma forma única de organização e de acesso à alimentação e esse período tem mostrado claramente que a relação entre a produção e o consumo do campo-cidade gera saúde e desenvolvimento local. A alimentação é um direito fundamental ao povo, portanto, o Estado deve prover e propiciar condições para sua produção e acesso, garantindo, assim, a segurança e a soberania da nação.

Agradecimentos

A ABAI, ao CAPA, Núcleo de Marechal Cândido Rondon, e à COPAVI, que contribuíram com a construção deste texto por meio do relato de suas experiências.

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