Fonte: Latuff, 2020.

Por: Eder Ribeiro Borba, Lunéia Catiane de Souza, André de Souza Fedel , e Rogéria Pereira Alba.

Texto publicado na Edição 180/2023, da Revista Cambota.

Como explicar que o Brasil, um dos maiores produtores de alimentos do mundo,tem 33 milhões de pessoas passando fome e 125 milhões convivendo com algum grau de insegurança alimentar?

Como explicar que São Paulo, a cidade mais rica do Brasil, tem mais de 52 mil pessoas em situação de rua? E a cidade de Nova York, a mais rica do mundo, com 340 mil milionários, tem mais de 53 mil pessoas sem-teto em centenas de acampamentos?

Como explicar que a fortuna de 25 bilionários mundiais é maior que o Produto Interno Bruto gerado em dezenas de países?

Se o capitalismo prega a liberdade, por que as pessoas não têm liberdade à alimentação, educação, saúde, moradia e direitos básicos à sobrevivência?

Essas são algumas contradições do sistema capitalista, que explora, maltrata e mata. Isso mesmo! O capitalismo mata! Segundo dados do relatório mundial sobre a crise alimentar, coletados por 238 ONGs de 75 países e apresentados no início de setembro de 2022, durante a Assembleia Geral da ONU, a cada 4 segundos uma pessoa morre de fome no mundo. São 21.600 vidas ceifadas por dia, ou poderíamos dizer que seria a morte de toda a população do Sudoeste do Paraná em apenas um mês. Mas por que isso acontece? Porque o capitalismo se apropria da riqueza natural e do trabalho humano, tornando-se destrutivo onde se instala, destruindo biodiversidade, culturas e vida.

Foto: Reprodução/Shutterstock, 2022.

A fome é um problema estrutural do capitalismo

A fome é uma forma de destruição e é um problema estrutural do capitalismo. E a razão é porque, conforme Marx anunciou no “Capital”, a produção da riqueza é social, mas a apropriação dela é privada.

A riqueza é produzida pela classe trabalhadora, mas é apropriada pelos donos do capital, que acumulam lucros e ampliam seu poder de dominação e expropriação. Com tais lucros, os burgueses vivem uma vida luxuosa, ampliam suas indústrias, adquirem outros meios de produção, aumentam seu poder político e seu poder ideológico para explorar mais trabalhadores, produzir mais mercadorias e obter mais lucros.

No sistema capitalista, o mundo todo foi transformado em mercadorias. O trabalhador vende sua força de trabalho para ganhar dinheiro, trocar por outras mercadorias que necessita para viver e continuar trabalhando.

Assim é a perversidade do capitalismo. Enquanto meia dúzia fica bilionária, grande massa da população fica vulnerável e sem comida na mesa.

Mundialmente, segundo levantamento da Forbes (2023), há 2.640 bilionários, que somam fortuna de US$ 12,2 trilhões. Para se ter ideia, esse valor equivale a quinze vezes nosso orçamento federal executado em 2022.

Por outro lado, segundo relatório anual produzido pela Food Security Information Network, houve aumento de pessoas em situação de fome no mundo. São aproximadamente 258 milhões de pessoas em 58 países e territórios que enfrentaram insegurança alimentar aguda em 2022, em comparação com 193 milhões de pessoas em 53 países e territórios em 2021.

A fome está mais presente, principalmente, nos países do Hemisfério Sul, os chamados subdesenvolvidos, conforme mostra a figura abaixo. Isso porque, na lógica capitalista, cabe aos países da periferia fornecer os produtos primários, de baixo valor agregado (não industrializados), condição que, devido à expropriação capitalista, tende a diminuir a transferência de renda para os trabalhadores, aumentando ainda mais a desigualdade social.

Figura insegurança alimentar, FAO.

Percebe-se que nos países do Hemisfério Norte (na cor mais clara), a escala da pobreza é bem menor (percentual entre 0% e 2,5%), comparada com os países do Hemisfério Sul (percentual entre 2,5% e 60%). Todavia mesmo nesses países, como o caso dos EUA e o continente europeu, a concentração de riqueza pressupõe grandes grupos de miseráveis em situação de vulnerabilidade.

Essa divisão de mundo mantém o domínio dos países desenvolvidos sobre os subdesenvolvidos, que ficam dependentes das multinacionais, dos empréstimos e da tecnologia. Para esse modelo de capitalismo monopolista dá-se o nome de imperialismo, atualmente com hegemonia dos EUA.

O imperialismo norte-americano é mantido pelo poderio econômico, bélico e tecnológico, alicerçado em frequentes guerras, que invadem países, destroem a soberania dos povos e roubam as riquezas das nações. Como já dizia Lênin, “a essência econômica do imperialismo é a guerra”.

A guerra aprofunda a miséria. O exemplo mais recente é a que ocorre na Ucrânia, que faz parte da disputa pelo poder hegemônico mundial entre os EUA e os países da OTAN versus Rússia, China e seus aliados. Uma das consequências dessa disputa é o aumento da fome nos países mais pobres, principalmente por sua dependência da importação de alimentos e insumos. A Rússiae a Ucrânia estão entre os maiores produtores e exportadores mundiais de bens alimentares essenciais. São responsáveis por quase um terço das exportações de trigo, cevada e sementes de girassol.

Na contramão da lógica imperialista norte-americana, sem promover guerras e atacar a soberania de outros países, e também na contramão da economia global, a China vem despontando como uma das principais potências econômicas, resolvendo o problema da extrema pobreza de seu povo. No fim de 2020, o presidente Xi Jinping, do Partido Comunista Chinês (PCCh), anunciou que “a China alcançou sua meta e tirou quase 100 milhões de pessoas da pobreza nos últimos oito anos”. Em quatro décadas, o país do Oriente retirou mais de 700 milhões de pessoas da situação de extrema pobreza, combatendo, consequentemente, a ocorrência da fome numa parcela relevante da sua população.

A estratégia chinesa é de longo prazo, com fortes investimentos do Estado em políticas multidimensionais, como políticas de bem-estar, redução da enorme disparidade entre o rural e o urbano e os problemas de acesso a saneamento, água potável, moradia, educação, terra, saúde, seguridade e assistência social.

A China se contrapõe ao sistema de desenvolvimento liberal proposto e executado pelo capitalismo, em que os capitalistas e seus defensores querem apenas crescimento econômico, sem utilizar as riquezas produzidas em outras dimensões da vida do povo.

Políticas neoliberais, transformações no mundo do trabalho e a volta da fome no Brasil

Enquanto a China erradicou a extrema pobreza, o Brasil, por sua vez, nesse mesmo período, percorreu o caminho inverso, voltou ao mapa da fome em 2020. Os governos neoliberais de Michael Temer e Jair Bolsonaro (2016 a 2022), desestruturaram as políticas de combate à extrema pobreza e demais políticas públicas associadas à garantia da saúde, educação, renda mínima, segurança alimentar e nutricional.

A prova do desastre das políticas neoliberais é que o país teve um crescimento de quase 50% da extrema pobreza em 2021, segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2022). Com o aumento, passou a ter 62,5 milhões de pessoas (29,4% da população) abaixo da linha da pobreza. Ou seja, um a cada três brasileiros estava vulnerável à fome em 2021.

Ilustração Latuff, Brasil de Fato, 2021.

Isso é reflexo do pós-golpe de 2016, com a expressão política de uma burguesia cuja acumulação de capital depende cada vez mais da redução da renda e dos direitos dos trabalhadores. A contrarreforma trabalhista aprovada em 2017 é um exemplo evidente da perda de direitos da classe trabalhadora, em favor da acumulação de lucros dos capitalistas. A promessa era “aprovar a reforma para aumentar os empregos”, mas na prática vimos um contingente de trabalhadores desempregados e 40% da população ativa trabalhando na informalidade, excluída do processo produtivo.

O capitalismo opera por exclusão da sociedade no mercado de trabalho e de consumo. De acordo com a filósofa Marilena de Souza Chauí, “essa exclusão se faz não só pela automação, mas também pela velocidade da rotatividade da mão de obra que se torna desqualificada e obsoleta muito rapidamente, como consequência, o aumento da pobreza absoluta” (CHAUÍ, 2020).

A reforma trabalhista contribuiu para o aumento da miséria, precarizou as condições de trabalho, retirou direitos trabalhistas e previdenciários, forçou a ampliação de jornada e abriu portas para retirar os vínculos do trabalhador com o patrão. Agora não se fala mais em operário, mas sim em empreendedor.

Conforme afirma o professor Ricardo Antunes, sociólogo com estudo aprofundado no mundo do trabalho, “há 15 anos, a palavra da moda era empregabilidade, as pessoas precisavam se qualificar para as vagas de trabalho”. Acontece que mesmo os/as trabalhadores/as fazendo graduações e especializações, não conseguiram emprego. Desta vez, a palavra da moda é empreendedorismo, que aniquila os direitos dos/as trabalhadores/as.

A narrativa dos capitalistas é que o empreendedor tem seu próprio negócio, tem a liberdade de trabalhar a hora que quiser. Essa falsa liberdade leva a exaustivas jornadas de trabalho, alguns extrapolam jornadas diárias de 15 horas. Nesse caso, afirma Antunes, “há uma superexploração dos/as trabalhadores/as e voltamos ao século XVIII, mesmo estando em plena era da revolução tecnológica. E por que a tecnologia não trouxe avanços? Porque é controlada por grandes corporações capitalistas que só visam lucro”.

Um exemplo dessa superexploração é a “uberização”, em que o trabalhador faz uso de seu carro e presta serviço conforme a demanda, para uma plataforma digital, sem qualquer vínculo empregatício, com aniquilação dos direitos trabalhistas e acumulação de lucros dessas corporações capitalistas. Segundo o professor Ricardo Antunes, depois da pandemia houve aumento de trabalhadores nesse setor, chegando à casa de 5 milhões de pessoas nessa condição.

Ilustração: Vitor Teixeira, 2019.

Verifica-se que a narrativa do empreendedorismo teve êxito, tanto que, depois da reforma, houve um aumento superior a 100% no número de microempresas. Em 2016, eram 6,64 milhões, já em 2022, segundo o boletim Mapa de Empresas, eram 13,48 milhões, sendo a maioria proletariado de serviços, que segue a mesma exploração do industrial. Ainda, segundo informações do Ministério da Economia, em 2022, quase 70% das empresas em atividade no Brasil eram de microempreendedores individuais.

É uma condição devastadora do mundo do trabalho. O cartão ponto do trabalhador se transformou em metas a serem cumpridas. A ideologia capitalista diz que o trabalhador precisa ser resiliente, ou seja, trabalhar o quanto for necessário, mesmo que 24 horas por dia, até que a meta seja cumprida. Dentre as consequências, comprometimento da saúde mental e acidentes de trabalho sem cobertura previdenciária.

Além desses/as trabalhadores/as, o Brasil iniciou 2023 com 9,4 milhões de desempregados e mais 3,9 milhões de desalentados; a soma desses números supera as populações do Paraguai e Uruguai. Um verdadeiro exército industrial de reserva de desempregados, produzido por uma política econômica neoliberal.

O novo governo Lula, com características progressistas, eleito em outubro de 2022, por meio de uma frente ampla, tem o desafio de romper essas políticas neoliberais e retirar milhões de brasileiros/as da extrema pobreza. A retomada da industrialização, com geração de empregos, valorização do salário mínimo, reconstrução das políticas de combate à fome, crescimento econômico com distribuição de renda aos/as trabalhadores/as, criação e fortalecimento de políticas de apoio à produção/comercialização de alimentos da agricultura familiar são algumas políticas prioritárias, somadas numa estratégia de articulação internacional com países que compõem o BRICS, fora do eixo imperialista norte-americano.

Caso ocorram esses avanços, serão algumas conquistas que servirão para dar ânimo à classe trabalhadora ir à luta e avançar na construção de uma nova sociedade. Ninguém luta com fome, por isso, combater a fome se torna tarefa prioritária.

Outra sociedade é possível?

O sistema capitalista está entrando em colapso, estamos diante de diversas crises: econômica, social, ambiental, sanitária, dentre outras que poderíamos destacar.Diante do cenário catastrófico para o planeta, Rosa Luxemburgo (participante da primeira Revolução Russa) afirmava, ainda no início do século XX, que a humanidade teria duas escolhas: “o socialismo ou a barbárie”.

E como seria uma sociedade socialista?

Temos o exemplo de Cuba, que passou por um processo revolucionário na década de 1950 e desde então adotou um regime socialista. Nesse período de um pouco mais de meio século, alcançou os melhores indicadores sociais e econômicos, acima de quase todos os países da América Latina e do Caribe e de alguns países desenvolvidos, como Alemanha, EUA e Japão, apesar das sanções econômicas impostas pelos EUA.

Já em 2014, Cuba foi reconhecida mundialmente pela FAO por ter erradicado a fome e a Unicef assegura que lá não há desnutrição infantil, apenas uma baixa porcentagem, inferior inclusive à média observada nos países mais industrializados.

Outro país que está desenvolvendo uma experiência de nova sociedade é a China. Segundo o pesquisador Elias Jabbour, “a China é uma sociedade que ainda está na sua fase inicial, criando uma base material, para que possa dar condições dignas de vida para 1,4 bilhão de habitantes”.

Mesmo nessa fase de transição, embrionária, em 70 anos a China deixou de ser um dos países mais pobres do mundo para ser o segundo mais rico; recentemente conseguiu o feito da superação da miséria extrema e lidera atividades de alta tecnologia, a exemplo da 5G e inteligência artificial. De acordo com Jabbour, “esses feitos só foram possíveis porque se colocou a ciência a serviço da sociedade e a tornou um instrumento de governo”.

Essas são conquistas que os chineses acabaram alcançando que beneficiam diretamente o conjunto da sua população, em oposição ao capitalismo, em que uma minoria enriquece e a maioria acaba empobrecendo. Com a erradicação da pobreza absoluta, a China atingiu seu primeiro objetivo centenário do Partido Comunista, na construção de uma sociedade moderadamente próspera. No entanto, para alcançar seu segundo objetivo de construir um país socialista moderno, que seja próspero, forte, democrático, culturalmente avançado, harmonioso e bonito, o PCCh deve continuar essa batalha e confrontar a pobreza relativa e a desigualdade.

A China está longe de ser uma sociedade perfeita, mas apesar das contradições, se contrapõe ao imperialismo norte-americano, está melhorando a vida de seu povo e desenvolvendo uma experiência na escala de 1,4 bilhão de pessoas.

E nós aqui temos muitos desafios pela frente. Vivemos um momento de esperança e de respiro para a classe trabalhadora. Oportunidade histórica de fortalecer as organizações e discutir o plano para o futuro.

A sociedade se move por meio das contradições. É possível a construção de uma nova sociedade, com justiça social e igualdade.

Internacionalizemos a luta, internacionalizemos a esperança.”

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