Prisões decretadas pelo juiz afetaram programa que distribuía orgânicos a necessitados

Por Marcelo Auler*

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Há cinco anos, em 13 de agosto de 2013, o juiz Sérgio Fernando Moro, à frente da ainda 2ª Vara Federal de Curitiba (hoje 13ª Vara) determinou a prisão preventiva de 11 acusados de fraudarem o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) com Doação, desenvolvido pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Ao atender o pedido da Polícia Federal, Moro ignorou a posição contrária do Ministério Público Federal (MPF). Com a decisão, a PF deflagrou a operação Agro-Fantasma, em 24 de setembro, com ampla cobertura da imprensa. O alvo principal foram associações e cooperativas de agricultores familiares no estado do Paraná e servidores da Conab. Entre eles, um gerente que teria ligações com o Partido dos Trabalhadores.

Roberto Carlos de Souza, com a esposa Terezinha, permaneceu 48 dias preso em 2013 e acabou inocentado das acusações
Roberto Carlos de Souza, com a esposa Terezinha, permaneceu 48 dias preso em 2013 e acabou inocentado das acusações

A ação atingiu diretamente um programa do governo federal que beneficiava agricultores familiares e fornecia comida à população mais carente em asilos, hospitais, creches e até via Pastoral da Infância. Mesmo rejeitando as prisões, o MPF denunciou 45 pessoas em oito ações e tentou criminalizar práticas do programa, colocando-o sob suspeita generalizada. Depois, em alguns casos defendeu a absolvição.

O efeito da ação policial, associado ao desinteresse do próprio governo, fez com que, após atingir um pico em 2012, com a distribuição de 16,2 toneladas de alimentos, o PAA com Doação no Paraná sofresse considerável perda.Exemplo claro do estrago feito está na Associação dos Grupos de Agricultura Ecológica São Francisco de Assis (Associação Assis). Criada em 2002, ela se espalhava por cinco municípios: Irati, Teixeira Soares, Rebouças, Inácio Martins e Fernandes Pinheiro. Em 2012, 120 famílias associadas entregaram cerca de 120 toneladas de alimentos. Após a prisão de três de seus presidentes, em 2013, e mesmo com eles inocentados, o grupo foi reduzido a cinco famílias associadas.

“Era o programa mais revolucionário, por pegar o mais marginalizado dos agricultores para beneficiar o cidadão mais marginalizado na cidade, os atendidos por creches, escolas públicas, asilos. Eram valores pequenos que para os agricultores era muita coisa, dado o nível de pobreza deles. Pegava a faixa mais pobre mesmo”, avalia o advogado Claudismar Zupiroli, de Brasília, defensor de dois diretores da Conab. Um programa que, como o JORNAL DO BRASIL mostrou na edição de ontem, é defendido por José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), como uma das soluções para combater a fome no mundo. No Paraná, ele foi destruído.

Na visão dos professores Anne Geraldi Pimentel, Juliana de Oliveira Sales, Katya Regina Isaguirre Torres e Carlos Frederico Marés de Souza Filho, autores do artigo A repressão político-judicial do Estado: a violência legítima da operação agro-fantasma e suas consequências para os agricultores campesinos da Região Sudeste do Paraná, publicado na revista Emancipação, em 2017, além de gerar renda e manter o sustento das famílias, o PAA “tirou várias famílias do cultivo do fumo, com a conversão para cultura agrícola de forma agroecológica”

Em 2012, no Paraná, o PAA distribuiu 16,2 toneladas de produtos agrícolas e pecuários, oferecidos por 8.215 agricultores. Beneficiaram 1.208 entidades (creches, hospitais, asilos, associações de caridade, etc.). Para atingir tais resultados, o Ministério do Desenvolvimento Econômico e Social, via Conab, aplicou R$ 31.338.905,67. Mas àquela altura o programa já estava na mira da Polícia Federal de Guarapuava (município a 260 quilômetros de Curitiba), um dos polos do agronegócio no estado.

Em um cálculo grosseiro, dividindo-se as 16,2 toneladas de todas as espécies de alimentos – entre hortifruti, derivados do leite e carnes – pelo valor aplicado verifica-se que o quilo dos produtos  girou em torno de R$ 1,93. Em outro cálculo conclui-se que cada um dos 8.215 agricultores faturou, em 2012, R$ 3.814,84 no ano, como mostra o quadro com dados da Conab.

PF buscou iate no mato

A suspeita de fraudes e desvio no programa era algo aparentemente surreal. O PAA limitava a compra de produtos a R$ 4.500,00 por produtor a cada ano. Em situações excepcionais o repasse atingia R$ 8 mil anuais por agricultor. Ou seja, o valor básico pago ao agricultor anualmente era menor do que o auxílio moradia pago hoje a juízes como o próprio Moro, mensalmente.

Mais surreal foi o fato de Moro utilizar um texto padronizado nos mandados de busca, sem a preocupação em tratar de forma específica os alvos da operação. Lidou com o caso como trata dos chamados crimes de colarinho branco.

Quando os agentes da PF foram ao Recanto Nascer do Sol, sítio de três hectares, no Arroio Grande, área rural de Irati, seu dono foi surpreendido. Roberto Carlos dos Santos, então com 44 anos, agricultor desde os 7, jamais fora chamado a se explicar. Da noite para o dia, tornou-se “chefe de quadrilha”. Antes de ser levado preso, os policiais o questionaram sobre uma embarcação. Um iate, nas palavras do agricultor. Seguiam a ordem de Moro que recomendava o recolhimento de “(…) documentos relativos à evolução patrimonial dos investigados, incluindo investimentos financeiros, matrículas de imóveis, documentos de propriedade de veículos, de embarcações ou de outros bens de elevado valor econômico (…)”.

Enfim, uma realidade diversa daqueles alvos. Filho de agricultor, Roberto Carlos só aos 30 anos saiu de Irati para conhecer Curitiba, que fica a duas horas de ônibus. O litoral descobriu aos 40 anos, ao visitar Guaratuba (a 300 quilômetros), em um intercâmbio da Associação Assis para os associados verem experiências de agroecologia. Seis anos após pisar na praia pela primeira vez, deparou-se com policiais buscando um iate no seu sítio. O JORNAL DO BRASIL tentou ouvir Moro, mas ele não respondeu até o fechamento desta edição.

Acusados foram todos inocentados

Seis anos após Moro autorizar a prisão de agricultores sem eles jamais terem sido chamados a se explicar, as oito ações penais abertas pelo MPF não resultaram em nenhuma condenação. Na visão do Judiciário, não houve crime. Apenas questões burocráticas, “desvios administrativos”.

A participação de Moro nos processos, porém, foi limitada. Com o início da Lava Jato, em março de 2014, ele repassou as ações penais à sua substituta na Vara. Mas uma de suas decisões persiste: o segredo de justiça. O acesso às ações é limitado.

Ao dar chance ao contraditório – como manda o Estado Democrático de Direito e o devido Processo Legal – a juíza Gabriela Hardt conseguiu entender que os fatos eram falhas administrativas, ainda que graves, mas não crimes como falsificações, desvio de verba pública, peculatos, entre outros – que a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e o próprio juiz Moro apontaram.

Ocorreram, por exemplo, com as chamadas “notas fiscais” de entrega dos produtos. Deveriam ser feitas pelo responsável de cada produção. O que era um desafio burocrático aos agricultores. Na Associação Assis a questão foi resolvida, de forma irregular, coletivamente. Em uma única nota, em nome de um só produtor, constava a produção de vários associados. Ou seja, aparecia alta quantidade de um produto, por parte de um único produtor, com remessa a um determinado estabelecimento. Na verdade, refletia a produção de várias famílias, distribuídas a vários estabelecimentos, que não apareciam na nota. Ao entender esta “operação” de drible à burocracia, a juíza constatou não haver crime.

“Diante do impasse narrado, o Ministério Público Federal não conseguiu se desincumbir do ônus de provar as acusações. O que assoma dos autos ao final da instrução processual é que o controle da execução do programa foi alarmantemente falho e relapso. A existência de irregularidades é patente. A denúncia, todavia, vai além, afirmando que essas irregularidades foram cometidas para encobrir desvio de recursos públicos, e esse desvio é que não foi comprovado: sem provas de desvio de valores ou obtenção de vantagem indevida, não resta configurado peculato ou estelionato; e ausente provas de dolo específico e interesse pessoal, não se pode falar em prevaricação”.

 

*Marcelo Auler é Jornalista no Jornal do Brasil

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