Ditadura civil-militar: Afasta de mim essa sombra

Viviane Tavares

Da EPSJV/Fiocruz

A data de 31 de março deste ano nos traz à lembrança um momento que não devemos apagar da memória: os 50 anos do golpe militar. Após as jornadas de junho, as tramitações de leis atuais e a quase diária incursão policial sobre as populações pobres, com uma violência promovida pelo Estado, mostram que ainda há sombras destes tempos.

Os resquícios desse período permanecem ainda na Constituição e com grandes empresas que nasceram ou cresceram às custas da ditadura, em áreas como a construção civil e a comunicação.

O alcance da Comissão Nacional da Verdade está aquém de países que passaram por ditaduras no mesmo período, como Argentina, Chile e Uruguai, e uma das provas é que, aqui, nenhum integrante do regime militar foi preso até hoje.

Os números dos tempos ditatoriais impressionam. Foram mais de 20 mil submetidos à tortura física, 360 mortos, incluindo 144 dados como desaparecidos.

Mas os números atuais são ainda mais alarmantes: mais de 18 mil jovens morrem ao ano, segundo o Mapa da Violência 2013, 47 mil pessoas estavam presas indevidamente, de acordo com relatório publicado em 2013 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e, até agora, dez pessoas morreram em decorrência da violência nas manifestações que começaram em 2013.

Além disso, o Brasil ainda convive com uma triste realidade: somos o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram após o regime militar, como aponta o filósofo Vladimir Safatle.

De 1984 para cá, casos simbólicos como o Massacre do Carandiru, a Chacina da Candelária, o recente desaparecimento do pedreiro Amarildo, em um Estado democrático de direito, mostram que as raízes dos tempos ditatoriais ainda não foram cortadas.

A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade Federal Fluminense (UFF) Virginia Fontes lembra que a violência traz traços de outros tempos, e que se fortaleceu de 1964 para cá.

A tortura e o assassinato fazem parte de uma tradição perversa do Brasil, que, em parte, deriva da escravidão. Só em parte, porque ela já acabou há 100 anos. A ditadura reconstitui e reproduz as práticas escravistas num trato com descontentamento popular. A tortura passa a ser feita em alta escala, é institucionalizada, o desaparecimento é mais ou menos oficializado, e a correlação entre os grandes proprietários e o Estado é coisa normal e banalizada. Essa é uma das piores coisas da ditadura, porque foi neste momento que militarizamos as polícias, subordinando-as às forças armadas que institucionalizaram a tortura, e toda uma cadeia de legitimação dessas práticas, que teoricamente acaba com a ditadura, mas que vemos todos os dias”, lembra a pesquisadora.

O doutor em história Demian Melo lembra que o período de transição da ditadura só foi concluído quando o conceito de democracia estava reduzido. “E isso não foi por acaso”, destaca ele.

A democracia no século 20 se caracterizava pela existência de direitos, não só direitos civis e políticos, mas também sociais. Com o processo de hegemonia do neoliberalismo, criou-se uma ideia de democracia na qual os direitos sociais são apenas um detalhe”, explica, e completa: “consolidou-se, portanto, no Brasil, após o regime ditatorial, um regime liberal. E, desde a independência até hoje, nunca se viveu com tanta estabilidade. Mas, ao mesmo tempo, tem havido um recrudescimento do aparelho repressivo do Estado, que não é um fenômeno só brasileiro”, lembra Demian.

O grande movimento popular em combate à ditadura foi a ‘Diretas Já’, e foi derrotado. Ele precisava do apoio de um parlamento que ainda era fruto da ditadura, que tinha senador biônico, e quem assume a presidência da república é o José Sarney, que fez parte da ditadura. Foi uma saída da ditadura mais pactuada, o que não quer dizer que não teve muita luta política, mas que não foram capazes de derrotar e muitas coisas foram sendo acordadas”, completa.

Ditadura hoje

Exemplos de leis em tramitação ou já aprovadas que remetem aos anos de chumbo não faltam. A mais recente, aprovada e sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, foi a Lei nº 12.850/2013 que considera “organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional”.

A pena prevista é de oito anos de prisão, podendo ser estendida. Esta lei, inclusive, ajudou a enquadrar diversos manifestantes no Rio de Janeiro. Desde a sua aprovação, essa lei já recebeu diversas críticas devido a iniciativas que ela prevê e que podem ser usadas e interpretadas para facilitar a interceptação de ligações telefônicas, acesso sem autorização judicial a dados de empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito, além de prever que policiais possam se infiltrar em atividade de investigação.

De maneira alguma, a autoridade policial poderia imputar àquele que está exercendo o seu direito de manifestar sua opinião ou o direito da liberdade de reunião”, explica Taiguara Souza.

Ainda na carona para enquadrar manifestações, após a trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade, que foi atingido por um rojão na cabeça durante um protesto, começou a tramitar no Senado Federal o Projeto de Lei conhecido como ‘Lei Antiterrorista’ ou mais conhecido como AI5 da Democracia, de nº 499/2013, que até o fechamento desta matéria não tinha ido a votação no Plenário.

O projeto aponta, por exemplo, penas de até 30 anos para quem “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa. de ofensa à vida, à integridade física, à saúde ou à privação de liberdade de pessoa”.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Wadih Damous, aponta que esse texto pode dar margem a diversas interpretações. “A lei antiterrorismo aponta condutas que não estão descritas na lei, portanto, dá margem para o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Polícia enquadrarem todo mundo como terrorista. Em dia de jogo, a torcida do Flamengo pode causar pânico e, por conta disso, eles podem pegar até 30 anos de cadeia”, ironiza, e conclui: “Se isso for aprovado, será um duríssimo retrocesso contra a democracia”.

Manual da ordem Indo ao encontro deste projeto, no mês de dezembro de 2013, o Ministério da Defesa, por meio da Portaria 3.461/ MD, aprovou o Manual da Lei e da Ordem, que orienta sobre como deve proceder uma operação militar conduzida pelas Forças Armadas, “de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado com o objetivo de preservar a ordem pública”.

Esta operação deve acontecer quando há o esgotamento dos meios de segurança tradicionais em determinada ocasião e a ação deverá ser autorizada pelo Presidente da República, que concede na ocasião, poder de polícia aos militares.

Considerado o AI nº do governo Dilma, o manual concede às Forças Armadas a condição de planejar, organizar, gerenciar e efetuar ações repressivas contra, por exemplo, manifestações públicas, quando estas forem interpretadas como ameaças – entendidas como “atos ou tentativas potencialmente capazes de comprometer a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio”, e podem ser praticados por forças oponentes, definidas como “pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio”. 

Resquício empresarial-militar 

Outras sombras daquele tempo são menos evidentes, mas não menos importantes. O professor Demian defende que a ditadura militar foi “um grande negócio para o grande capital”. 

Deste período, empresas que foram construídas ou se fortaleceram por conta de sua ligação com o Estado estão até hoje na liderança de suas áreas de atuação como na construção civil os grupos Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Mendes Júnior e Odebrecht, na indústria pesada com a Gerdau, Votorantim e Villares, no sistema bancário como Bradesco e Itaú. 

No ramo da comunicação, as Organizações Globo. A criação de empresas estatais, muito defendida como um plano nacionalista por parte dos militares, também é contestada pelo pesquisador, como um processo de racionalização econômica. 

As empresas foram criadas em certos setores da economia –, que para o capital privado e que precisa de um lucro mais rápido não interessa –, mas são funcionais na reprodução global da lógica do sistema. A Embraer, por exemplo, criada durante a ditadura militar e que hoje está na mão do setor privado, na época não tinha interesse do setor privado, mas era funcional para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Naquele período, ter a participação do Estado na economia se dava em função de criar as condições e ambiente necessários para o grande capital privado monopolista”, explica. 

Empresas como a Embratel, a Telebras e as usinas de Itaipu, Tucuruí e Ilha Solteira também foram criadas neste contexto e depois privatizadas no governo Fernando Henrique Cardoso. 

O milagre econômico foi o grande projeto que a ditadura conseguiu implementar, um processo de aceleração da acumulação capitalista, que atendeu aos interesses dos grandes monopólios do capitalismo internacional que estavam instalados no Brasil e que conseguiram lucros faraônicos. Mas também grandes grupos privados nacionais se fortaleceram nesse processo todo”, explica. 

Foi neste momento também que começou a se fortalecer a relação que o país tem até hoje com bancos internacionais. Para financiar o “milagre econômico”, o país deu início ao crescimento do seu endividamento externo, a chamada dívida pública. 

No período de 1970 a 1980, como aponta a Auditoria da Dívida, a dívida cresceu 1000%, pulando de US$ 5 milhões para US$ 50 milhões em âmbito federal. Hoje consome cerca de 40% do nosso Produto Interno bruto (PIB), o equivalente a R$ 718 bilhões no último ano. 

Professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Renato Lemos lembra também de semelhanças na presença do grande capital estrangeiro na economia brasileira durante o governo Médici e agora no governo da presidente Dilma. 

O período de Médici foi quando as grandes empresas, as multinacionais ou transnacionais, como a indústria automobilística lideraram o dinamismo econômico. E hoje, enquanto o governo Dilma proclama o ufanismo tupiniquim,  ela concede todas as isenções para o mercado automobilístico lucrar. E quem é o mercado? As mesmas transnacionais do período do Médici”, destaca Renato Lemos. 

Tudo que há de comum é mais que um resquício, é uma linha de continuidade, é uma identidade que traduz o conteúdo social dos regimes políticos. O conteúdo de dominação de classe que vivemos hoje é o mesmo conteúdo básico do regime ditatorial. Agora o inimigo de classe é o mesmo, a necessidade de manter a ordem é a mesma – não é por acaso que a repressão aos movimentos sociais vêm aumentando no momento em que o Brasil tem recebido grandes investimentos ligados aos megaeventos”, analisa Renato Lemos.

 Fonte: Brasil de fato

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